quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Os olhares, as lentes e o tempo.


Eu sempre me atraí pelos olhares. Quando criança, adorava ficar observando desconhecidos na rua, tentando adivinhar o que se passava pela cabeça deles, que história se escondia por trás de um determinado rosto, inventando formas diversas de narrar os fatos daquela vida. A expressão facial como um todo me apaixonava.

Mas eram os olhos que me faziam amar.

Era um deleite poder redesenhar os olhos dos transeuntes que eu encarava quando menina. Eu gostava de surpreender olhares alegres e imaginava milhares de outros motivos que continuariam enchendo de brilho aqueles rostos. Gostava também dos olhos tristes, embora me parecessem buracos fundos que atingissem a alma da pessoa. Acho que de alguma forma minha mente divagava até uma imagem de órbitas vazias quando via alguém muito triste. Eu não conseguia enxergar brilho e nem vida. Só côncavos profundos na parte superior do rosto... Como se realmente houvesse ali algo de macabro, algo que eu não queria ver porque parecia destoante da minha fantasia de criança.

O fato é que aqueles olhos existiam... E estavam por toda parte. Anos a fio eu me esforcei para alterar o desenho daquelas órbitas vazias. Inventava risos, floreava com borrões de afeto e somava aos finais felizes das princesas borralheiras.

É... A Disney ferrou com a minha noção de realidade! Mesmo assim o passar dos anos operou maravilhas na minha planilha quimérica e eu finalmente preteri as órbitas vazias em favor dos olhares opacos. Um momento posterior revelou que nem opacos eram... E não é que tinham brilho os tais? Era uma coisinha tímida, reprimida na maioria dos casos, mas estava lá sim.

Eu descobri isso olhando uma velha. Ela estava sentada na sala de espera de um hospital. Olhava em direção à televisão do lugar com os mesmos olhos murchos que eu me tinha habituado a ver. Depois olhou para os lados sem parecer enxergar as pessoas ao redor. Abriu a bolsa sem pressa, como quem refletisse sobre alguma coisa profunda e ao mesmo tempo procurasse romper lentamente a inércia (podia ser tão somente o peso dos anos fazendo morada nos seus músculos... Mas a imaginação nunca alcança o óbvio...).

Murmurou algumas palavras que, à distância que nos encontrávamos, eram inaudíveis e depois retirou de dentro da bolsa uns óculos com a armação partida ao meio, bem no arco sustentado pelo nariz. Ficou ali por uns sete, dez minutos, segurando as duas partes da mesma peça como quem tentasse colá-las magicamente.

Pareciam apenas objeto roto e dona inconformada...

Mas bem poderiam ser uma pessoa cansada e uma vida cheia de arestas que ficaram por aparar. É! Poderia sim! Era uma mulher que fora razoavelmente atraente em sua juventude. Tivera várias chances de tomar rumos retos, conhecera de perto o mundo tortuoso e acabou não se decidindo por viés algum. Acabara transformando sua existência num eterno esperar... Na esperança de ser chamada, na expectativa de iniciar qualquer experiência marcante, na iminência do movimento.

O tempo passou... O fogo do olhar deu lugar à fumaça de vela recém apagada. Pouca coisa restou por lutar. Muitas coisas ficaram por fazer, muitos sonhos por conceber... Sobrou o sustentáculo no qual ela amparava as lentes, estas postas diante dos olhos para justificar a sua inação. A vida inteira aqueles óculos obnubilaram a realidade à sua volta. Ela bem que pensou em retirar as lentes, mas desistiu de imediato quando percebeu que não teria ninguém mais a culpar. Melhor culpar os óculos velhos, com seus arranhões e os vidros amarelados, do que tomar para si as rédeas do seu olhar.

Eis que um dia, a armação das lentes se partiu. E ela percebeu que não importava o que fizesse para fugir à responsabilidade: Escapar dos encargos da vida também era uma escolha. Substituir a armação ao longo dos anos era encargo unicamente dela... Entretanto havia preferido esperar que o mundo se moldasse às lentes que usava .... Os óculos foram ficando velhos e o mundo nunca se curvou diante deles.

E ainda assim havia brilho naquele olhar... Não sei explicar o porquê. Deve ser algo ligado a uma esperança de que as coisas se consertem... Ou ao desejo de reparar os óculos para que unicamente ela possa quebrá-los, jogá-los no chão com violência, se permitir um rompante de fúria que destrua aquelas lentes.

Ela... E não mais o tempo.